Partidas
segunda-feira, 31 de agosto de 2020
As pessoas perderam a sensatez e se transformaram em personagens tontos, que vagam no espelho, nas ruas e numa tela de um aparelho qualquer. Mas o que é ser sensato? Quem é sensato?
Um vislumbre e um poder. Uma ferramenta.
Companhia maravilhosa que se faz no meio do quintal.Doce que brilha na vitrine, salivo e dispara o coração.PA-LA-VRA.Canção, poema, romance, manifesto, credencial, partitura, pinceladas no vento, batuque e caminho.Clarão na alma e guia.E dela é feita a não palavra.O Nonada é a vida contemporânea. Esse deserto íntimo que teimamos em compartilhar.A essência do eu nas cinzas adormecidas.As coisas a serem feitas, perdidas no emaranhado de luz que brota na cabeça.Deve ser porque persisto no caminho de crer na palavrae na forma que ela toma, quando vira ação.Nada é mais difícil do ser/tornar-se resistência, hoje.Em frente ao espelho, de frente pro sol, mirando no olho do filho. Percorrer o infinito caminho da modernidade líquida.E não esqueço jamais do Bourbon que me fez companhia.Vive-se e goza-se. Perdoe-se e puna.2020 - janeiro.
Terra batida. Cachorro e cavalo no pasto. Casa branca na estrada. Sol quente, vento quente. Podia voltar a fazer frio. Ai! doía o pé e uma perna. Doía a fome. O cachorro pulava sem parar diante de um buraco. Tatu.
Árvore, sombra, uma goiaba. Senta.
Parou um carro. “Vai pra roça?” - Sim, tô quase lá. “Vem. Te deixo. Sobe.” Sacudiu mais 2 quilômetros. – Brigada, Zé. Bateu na carroceria. Zé foi, com sua Ford, virou na curva e sumiu. Ali, no milharal, tudo some. Cadê cachorro? Cadê enxada?
Milho, milho, milho.
Todo seco, nada vinga nessa terra seca. Meu Deus! Só isso. Ninguém tinha milho bom. Juca, D. Edna, Tavinho, até a rocinha do alemão tava seca. Coitado, saiu da Europa pra passar fome no meio de Minas.
Vi um dia o alemão correndo no meio do milharal. “Was für eine Scheiße!” Devia ta achando tudo uma merda só.
O milho, ele tem uma coisa com água. Deve ter plantado muito tarde, o alemão não sabia de nada.
O Tavinho inda fez certo. Mas largou as coisas de lado. Coração partido estraga o homem e a lavoura.
Milho e sol quente, desde pequena eu vejo isso.
Eu tinha medo do pai, quando chegava suado, vindo do milharal e resmungando com a seca. “Só palha! Só sol!”, eu sentia a raiva no meio dos dentes dele. Mãe nem reagia. Um banco seco, uma caneca torta, um naco de bolo (de milho). “Dêxa seu pai, menina.”
Nada de correr na cozinha. Essa hora era de correr com as galinhas, secas, magras, no canto de uma terra seca.
Conta a vó que pai era só isso. Sempre correndo o milharal e secando o suor.
O alemão chegou uns dois anos. Eita que é bonito! Eu nunca vi igual assim. Mãe diz que é moço de família, “Nem tem olho para menina como tu”. “Menina, mãe? Tenho 28!”
Uns 7 anos que eu tinha. Peguei um trem no corpo que mãe achou que ia morrer. Ninguém sabia; só tinha dor, vontade de chorar e não comia. Vó disse que eu tinha aguado.
Pai não me via, não entrava no quarto. Mãe chorava na cozinha e no terreiro, fazendo as galinhas correrem e o arroz queimar.
Veio padre de perto e de longe. Veio pastor, e veio a benzedeira. Dona Vera, ela que me rezou dia e noite durante uma semana.
Uma tarde, Seu Geraldo parou pro café e tirou das tranqueiras um chocolate. Mãe pegou e comi escondido.
Deus, dizem, é milagreiro. E tô aqui, no meio dessa roça. Nesse sol. O chocolate salva e hoje eu queria um, salvar essa raiva.
28 anos. Sei ler e fazer comida. Escrever para que? Sei plantar o milho, é o que tem. Ando uns caminhos todos os dias. Só. Outro dia, o pai disse que a gente tinha que ir pegar documento no banco, na cidade. Foi a última vez que fui lá, tem quase 5 mês.
Depois do banco, pedi pro pai pra cortar o cabelo. Tava igual o milho. Seco, amarelo. Tava a igual palha. Pai deixou. A moça pediu pra esperar, olhava para outra moça e ria. Ria, ria. As duas. Duas moças secas. Arranquei o pano do pescoço e levantei.
Em casa, mãe pegou a tesoura e cortou. Diacho de gente que ria. Sol quente e duas magrelas rindo.
O Zé trouxe o caminhão e parou pertinho de casa. Tava carregando a mudança do alemão. Ia embora, vendeu terra. Olhei a carroceria. Tinha pouca coisa. Mas tinha livro. Eu sei o que é livro, lá na escola tinha e a professora deixava pegar. Sei porque consegui ler duas capas que tavam junto com outros que não consegui ler o que eram. Deve ser na língua dele. “Tenho que levar tudo isso inté na cidade, que lá vai colocar em outro caminhão. Deu 100 conto pra mim. Tá bom.”
“Zé, me deixa ficar com esses aqui?” “Tá doida, Juventina? O alemão briga comigo.” “Ele nem vai sentir falta, Zé. Cê diz que caiu na estrada...”
Um de capa amarela, capa velha. “Drá-cu-la”. O outro eu só vi que tava escrito ”Guia de Minas” e tinha muita fotografia. E foi o Zé com o caminhão. Eu fiquei mexendo no livro de fotos e pai veio me tomar. Puxei pro lado. “Tá na hora de ajudá tua mãe. Depois ocê vê esse trem.”
Sol e milho, duas cestas cheias e a gente limpando outra. A mãe de boca seca e de olho em nada. Peguei água. Ela bebeu. Resmungou. Caiu o cesto no chão, espalhando o milho.
“Disgrama de cesta. Disgrama de vida. Disgrama de milho.”
agosto 2020

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