sábado, 28 de setembro de 2013

Lá no quintal

O quintal era um lugar de se perder. O quintal era o lugar de se encontrar. Das bananeiras, da amoreira, mangueira e figueira, eu achava que os quintais de todas as casas de meus amigos tinham as mesmas árvores que o nosso tinha. E, dentro dele, nós construímos casas, cidades, estradas e pontes. Ele tinha de tudo e guardava de tudo. Bicicleta, enxadas, gaiola de codornas, casa do cachorro, churrasqueira de tijolos, bolas, cordas e pneus. Bolinhas de gude. Finco, facas. A terra toda riscada no dia seguinte da chuva. As mangas caídas no chão e as folhas para varrer.

Os cavalos de madeira repousavam no canto, esperando o próximo cavaleiro que iria conquistar o terreno quintal. As cadeiras e a mesa espalhadas nos domingos e  os garrafões de vinho guardados, vazios, diziam das festas que ali tinham sempre.
O limite de quintais eram os muros, cada qual de uma forma diferente e cercados de plantas. A divisa com o vizinho de fundos foi uma cerca de zinco e depois virou muro. Ali era a nossa conversa.
O melhor de se lembrar eram as noites em que faltava luz. O pai nos chamava para fora, pegava o violão e danava a dedilhar canções que só ele sabia. Ali ficávamos no verão, ali nos escondíamos na hora da zanga.
Por ali, quando se olhava para o morro de eucaliptos, a neblina do inverno deixada tudo com um jeito de mistério. Por ali, nós capturamos vaga-lumes, montamos os carrinhos de rolimã, deitamos nas esteiras para ver estrelas.
Outra noite dessas, eu tentei ir até lá...As mangueiras e figueiras sumiram, os muros das conversas sumiram, talvez até os vaga-lumes.
Apenas o morro de eucaliptos continua lá atrás, e o mistério da neblina não existe mais.

regina vilarinhos

Coletivo Poesia em Volta para ouvir e gostar

Estamos no ar, agora com nossos poemas gravados e editados. Acesse o link abaixo e conheça nossos poetas e suas vozes.


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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

ÓCULOS!


Um tanto assim novo, moderno. Parecia ser parceiro eterno, sempre presente em momentos cada vez mais especiais, desde que os dois se conheceram, no verão passado. Ele, estiloso, de um charme especial. Ela, em fase de renovação, achava que não viveria mais sem ele, ali, bem juntinho.
Caía como uma luva, o encaixe e as formas fizeram dos dois um só, e não mais se separavam. Quando ia ao sol, ela deixava-o protegido, não queria correr o risco de prejudicá-lo.
Por várias vezes, os amigos elogiavam sua escolha e ela sentia-se radiante. Depois de anos tentando, buscando aqui e ali, finalmente havia acertado em gênero e grau, especialmente na cor, que foi o que a fez se apaixonar perdidamente por ele.
Certa noite, ao sair do reiki, ele a aguardava. O vento frio cortava o seu rosto e ela não sentiu vontade. Sentindo que não era o momento apropriado, preferiu ficar quieto, não questionou. Fizeram o caminho para casa rapidamente sem perceber o perigo que os rondava.
Meio que tonta e cansada, fechou o casaco, apertou o passo. Frio, fome, dúvidas. Ao chegar perto do semáforo, ela percebeu que tinha sido rude com ele e tratou de consertar a situação.
Tarde demais! Não, não podia ser verdade. Mas era.
Fez o caminho de volta pela rua, procurou por todos os cantos, no prédio... ele havia sumido, ela não sentiu...somente quando pôs as mãos no bolso do casaco...
E, sentindo que não ia segurar a emoção e o desgosto do momento, enfim acreditou no que o destino lhe reservara naquela noite fria de primavera, de 2013.

Perdeu-o! para sempre, lindo, vermelho e branco, seus óculos de grau, comprados em 10 parcelas e que ainda faltavam 4 para pagar.


regina vilarinhos


 

MUDE VOCÊZINHO!

Mude vocêzinho! (divagações livres com licença poética)

Não use de jeitinho!
Não peça ao padrinho
não coloque dinheirinho
dentro do envelopinho
ou junto da multinha.

Não peça favorzinho
para ajudar o seu filhinho
ou para esconder o seu carrinho
que matou um "manifestantezinho".
Não deixe o seu lixinho
o papelzinho
de balinha
fora da lixeirazinha.
Não esqueça a camisinha
não faça um filhinho
não diga que foi golpe de mulherzinha.
Não peça um pontinho
se você não fez o trabalhinho.

Seu bom dia pro vizinho,
Já deu?
Visitar a vozinha
Já foi?
A historinha
pro filhinho
Já contou?
O cocozinho
do seu cachorrinho
Já limpou?

O votinho
na urninha
já vendeu?

regina vilarinhos

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Pas de deux


O poeta dança sobre o mar de palavras.
Elas que jogam seus braços sobre o papel
e ele, refém, é levado.
O tom da música obedece o momento.
As mãos do poeta obedecem a coreografia.
Rodopiam,
vão ao chão,
se soltam
num salto,
caem de novo.
São puxadas pelo vento,
são deslizantes cisnes sobre a folha
e seus suspiros completam a cena.
Roto, suado, esvaído,
o poeta consegue, por fim,
levantar o lápis.
O fim da cena é
o ponto,
final.


regina vilarinhos

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Palavras na manhã fria


As palavras foram colocadas lado a lado
friamente, naquela manhã,
e foram perdendo o sentido e
doçura que tiveram antes.
Os nomes das coisas, as luzes das coisas,
os dentes das coisas,
as orelhas das coisas
todas que sempre tiveram lar
ficaram permanentes
na natureza morta que estava na parede
e sobre a mesa de centro.
Não, um café não estava pronto
nem cheirava na cozinha o seu dia
amanhecendo.
O leite e o pão deixei para trás e
ainda ouvi os passos do leiteiro correndo pela
varanda, tonto e tropeçando no jornal caído na porta.
Pobre manhã a dele e a minha.
Um apito longe daquela usina longe
lembrou que a vida continuava do outro lado
da cidade, da porta, do jardim, do outro lado da neblina.
As horas riam loucamente do meu rosto no espelho,
as vozes da noite arranhando a parede do banheiro,
irritando a lembrança,
doendo o cinza na alma.

regina vilarinhos