segunda-feira, 31 de agosto de 2020

 Partidas

Mil pessoas estão à sua frente! E somem todas elas, entre o nascer e o por do sol.
Você disse que ia tomar café na casa da sua tia semana que vem. Não vai mais. Seu amigo marcou um chope com os 10 melhores dos últimos 10 anos. Não vão mais.
Tinha uma formatura semana que vem, daquela mina linda e que fez a facul com o FIES. Não tem mais formatura.
E o almoço de 90 anos da vovó, na casa dela em Passa Quatro? Não tem almoço, será uma homenagem virtual porque o filho mais velho, o Maurício, também já partiu. Falei para ele para não ir à praia no Rio.
Foi. Pegou. Internou. Morreu.
Esquece o resto do mundo e pense só no Brasil. Mil partidas, todos os dias.
Imagine que 1000 pessoas estão à sua frente numa fila para morrer e você torce para demorar a chegar sua vez. Você pensa: tô nova, cheia de saúde e muito a fazer nesse país. Não tem porque Deus me levar agora!
Mil pessoas estão à sua frente num embarque e seu check in demora! Você reclama, chama o gerente, faz barraco. Afinal, você pagou essa passagem e chegou cedo para fazer tudo certinho.
Mil amores da vida de outros 3 mil e tantos. É coração de mais para Aruanda dar conta, todos os dias.
Todos os dias.
Partir é verbo cheio de complementos ou sem eles: transitivo direto, transitivo indireto, transitivo direto e indireto, intransitivo e pronominal.
Partir é verbo cheio de gente! CHEIO DE GENTE!
Indo, sempre indo.
Todos os dias, mil despedidas à distância.

2 de agosto de 2020

 As pessoas perderam a sensatez e se transformaram em personagens tontos, que vagam no espelho, nas ruas e numa tela de um aparelho qualquer. Mas o que é ser sensato? Quem é sensato?

Visto minhas roupas mais antigas na busca do meu cheiro em cada fibra de tecido. Acordar, café, ônibus, trabalho, almoço, casa da mãe, gatos e cachorra, plantas, poemas, buscas e respostas para tudo, faz pensar que o controle da nossa situação é todo nosso.
Tolice imaginar que exista um padrão para o nascer, viver, amar e morrer. Não tem!
Ninguém é o outro e todos estão tentando ser tudo ao mesmo tempo.
É preciso guardar a lembrança do abraço e do sorrir juntos, deitados na rede ou na relva, vendo a lua nascer, e não a foto mais curtida e o sorriso perfeito, postados com os filtros da mentira.
regina vilarinhos - 2014/2016

 

Este tempo que é um tempo
outro,
feito de silêncios entre a manhã
e o canto da coruja.
Sobras, rascunhos, ruínas e
lascas de madeira,
tudo o que se pode ser
outra
coisa.
Queimando no fogão à lenha,
na moldura dessa janela.
na parte de cada linha.
Outrem
era uma canção
da fuga,
do soneto, em forma,
com as garrafas de leite,
esperando na porta de casa.
No banco de madeira
eu espero,
suspiro,
aqueço,
faço a história se acumular
na fumaça que sobe,
nas carnes defumando.
agosto de 2020
A vida me pede poesia.
O cheiro da horta
noutra
terra,
serra,
montanha.
Sombras, folhas,
visão.
Eu quero um campo,
uma casa
e tudo mais.
2020

Um vislumbre e um poder. Uma ferramenta.

Companhia maravilhosa que se faz no meio do quintal.
Doce que brilha na vitrine, salivo e dispara o coração.
PA-LA-VRA.
Canção, poema, romance, manifesto, credencial, partitura, pinceladas no vento, batuque e caminho.
Clarão na alma e guia.
E dela é feita a não palavra.
O Nonada é a vida contemporânea. Esse deserto íntimo que teimamos em compartilhar.
A essência do eu nas cinzas adormecidas.
As coisas a serem feitas, perdidas no emaranhado de luz que brota na cabeça.
Deve ser porque persisto no caminho de crer na palavra
e na forma que ela toma, quando vira ação.
Nada é mais difícil do ser/tornar-se resistência, hoje.
Em frente ao espelho, de frente pro sol, mirando no olho do filho. Percorrer o infinito caminho da modernidade líquida.
E não esqueço jamais do Bourbon que me fez companhia.
Vive-se e goza-se. Perdoe-se e puna.
2020 - janeiro.

 

Terra batida. Cachorro e cavalo no pasto. Casa branca na estrada. Sol quente, vento quente. Podia voltar a fazer frio. Ai! doía o pé e uma perna. Doía a fome. O cachorro pulava sem parar diante de um buraco. Tatu.

Árvore, sombra, uma goiaba. Senta.

Parou um carro. “Vai pra roça?” - Sim, tô quase lá. “Vem. Te deixo. Sobe.” Sacudiu mais 2 quilômetros. – Brigada, Zé. Bateu na carroceria. Zé foi, com sua Ford, virou na curva e sumiu. Ali, no milharal, tudo some. Cadê cachorro? Cadê enxada?

Milho, milho, milho.

Todo seco, nada vinga nessa terra seca. Meu Deus! Só isso. Ninguém tinha milho bom. Juca, D. Edna, Tavinho, até a rocinha do alemão tava seca. Coitado, saiu da Europa pra passar fome no meio de Minas.

 

Vi um dia o alemão correndo no meio do milharal. “Was für eine Scheiße!” Devia ta achando tudo uma merda só.

O milho, ele tem uma coisa com água. Deve ter plantado muito tarde, o alemão não sabia de nada.

O Tavinho inda fez certo. Mas largou as coisas de lado. Coração partido estraga o homem e a lavoura.

Milho e sol quente, desde pequena eu vejo isso.

Eu tinha medo do pai, quando chegava suado, vindo do milharal e resmungando com a seca. “Só palha! Só sol!”, eu sentia a raiva no meio dos dentes dele. Mãe nem reagia. Um banco seco, uma caneca torta, um naco de bolo (de milho). “Dêxa seu pai, menina.”

Nada de correr na cozinha. Essa hora era de correr com as galinhas, secas, magras, no canto de uma terra seca.

Conta a vó que pai era só isso. Sempre correndo o milharal e secando o suor.

 

O alemão chegou uns dois anos. Eita que é bonito! Eu nunca vi igual assim. Mãe diz que é moço de família, “Nem tem olho para menina como tu”. “Menina, mãe? Tenho 28!”

 

Uns 7 anos que eu tinha. Peguei um trem no corpo que mãe achou que ia morrer. Ninguém sabia; só tinha dor, vontade de chorar e não comia. Vó disse que eu tinha aguado.

Pai não me via, não entrava no quarto. Mãe chorava na cozinha e no terreiro, fazendo as galinhas correrem e o arroz queimar.

Veio padre de perto e de longe. Veio pastor, e veio a benzedeira. Dona Vera, ela que me rezou dia e noite durante uma semana.

Uma tarde, Seu Geraldo parou pro café e tirou das tranqueiras um chocolate. Mãe pegou e comi escondido.

Deus, dizem, é milagreiro. E tô aqui, no meio dessa roça. Nesse sol. O chocolate salva e hoje eu queria um, salvar essa raiva.

 

28 anos. Sei ler e fazer comida. Escrever para que? Sei plantar o milho, é o que tem. Ando uns caminhos todos os dias. Só. Outro dia, o pai disse que a gente tinha que ir pegar documento no banco, na cidade. Foi a última vez que fui lá, tem quase 5 mês.

Depois do banco, pedi pro pai pra cortar o cabelo. Tava igual o milho. Seco, amarelo. Tava a igual palha. Pai deixou. A moça pediu pra esperar, olhava para outra moça e ria. Ria, ria. As duas. Duas moças secas. Arranquei o pano do pescoço e levantei.

Em casa, mãe pegou a tesoura e cortou. Diacho de gente que ria. Sol quente e duas magrelas rindo.

 

O Zé trouxe o caminhão e parou pertinho de casa. Tava carregando a mudança do alemão. Ia embora, vendeu terra. Olhei a carroceria. Tinha pouca coisa. Mas tinha livro. Eu sei o que é livro, lá na escola tinha e a professora deixava pegar. Sei porque consegui ler duas capas que tavam junto com outros que não consegui ler o que eram. Deve ser na língua dele. “Tenho que levar tudo isso inté na cidade, que lá vai colocar em outro caminhão. Deu 100 conto pra mim. Tá bom.”

“Zé, me deixa ficar com esses aqui?” “Tá doida, Juventina? O alemão briga comigo.” “Ele nem vai sentir falta, Zé. Cê diz que caiu na estrada...”

Um de capa amarela, capa velha. “Drá-cu-la”. O outro eu só vi que tava escrito ”Guia de Minas” e tinha muita fotografia. E foi o Zé com o caminhão. Eu fiquei mexendo no livro de fotos e pai veio me tomar. Puxei pro lado. “Tá na hora de ajudá tua mãe. Depois ocê vê esse trem.”

 

Sol e milho, duas cestas cheias e a gente limpando outra. A mãe de boca seca e de olho em nada. Peguei água. Ela bebeu. Resmungou. Caiu o cesto no chão, espalhando o milho.

“Disgrama de cesta. Disgrama de vida. Disgrama de milho.”


agosto 2020