Mulheres da verdade
Há anos elas se mantiveram ali,
presentes, sem ruir ou lamentar. Não tinham para onde ir, sentiram a tristeza
da separação, da não vivência das infâncias de seus filhos e da maturidade dos
outros homens que eles se tornaram. Porque para viver assim é preciso mais que
um rosto, é preciso ter por perto a essência das mães dos presos, das mães dos
escravos, das mães dos meninos que se escondem atrás dos carvões.
Outros outonos e invernos a mais,
vividos no cinza da saudade, no meio da cozinha vazia, e sempre a sentir o
estômago doer na mágoa.
Muitos rosários e ladainhas
soados sobre as pedras do pátio, cada um ecoando nos tímpanos e reverberando na
alma angustiada, dolorida. Viam os olhos umas das outras a salgar os seus
rostos. Viam a noite chegar entre os dedos apontados para a torre da igreja,
imaginando que dali viria o Anjo.
Perderam a metade da existência
assim e queriam ver a outra metade seguir junto com o rio, pra longe, para o
outro país. E quem sabe lá, em outra língua, a ladainha fizesse mais efeito e
Deus tomaria conta das dores e das lágrimas de cada uma delas.
Não podiam esperar mais. Por
conta de tantas notícias que estavam a todo o momento nos telejornais, por
causa das ossadas e dos caminhos subterrâneos descobertos pelos investigadores
da Comissão, pensavam em ir junto com eles nas novas buscas por provas, corpos,
testemunhos e então, respiraram. Não podiam ir. Ficariam de fora, olhando,
sentindo, remoendo e esperando que não fossem dele, do seu filho, amante,
amigo, irmão ou companheiro da redação.
Ardia a vista olhar para tanto
nada dentro de casa, dentro das gavetas, repletas de blusas mofadas e ainda com
cheiro dos muitos cigarros que fumaram juntos, há quarenta anos. Os netos que
vieram trazer mais um pouco de movimento para o canto da sala, hoje não vinham
mais. Cresceram! Cresceram!
Eles não viram. Não ouviram os
chorinhos e as gargalhadas de bebês. Não, nenhum deles, sem fotos com os vovôs,
sem pescarias, sem missa de domingo e sem cachaça e causos para contar com os
poucos amigos.
Foram-se. De dentro da cela, de
fora dela, do fundo do porão. Com as guimbas de cigarros baratos, com os fios
desencapados, com as lâmpadas e as gotas d´água sobre os cérebros...
De lá para o onde? Para o quê?
Para o por quê?
E perderam-se nas lembranças
boas, nas cartas amarelas e não perceberam as vidas que seguiram. Desde o tempo
de tudo, os holerites transformaram-se na garantia das manhãs com algum café na
mesa. Depois de Geisel, ainda carregaram a marca da família comuna. E enfrentaram
os dias de reunião de mães, os dias de ficarem caladas, ou de jogarem pro alto
e gritarem nas ruas novamente, em frente aos Palácios e Fóruns. Nada para
deixar a dor menor, apenas para exalar para os outros as suas dores também.
Algumas delas ainda carregam
sinais e vestígios dentro e fora do corpo. Outras se jogaram no desânimo e
conseguiram escapar do dia a dia de ausências e sonhos interrompidos.
Perceberam que os garotos da Casa da Morte estavam juntos em outras
brincadeiras e não as levaram.
A vida, então, passou a ser
medida pelos pequenos encantos das recordações, dos pedacinhos deles que
ficaram a passear pelo travesseiro, nas noites em claro. Lua após lua. Um laço apertado no pensamento e a proteção da
mão invisível sobre seus ombros guiando a resistência de cada uma.
regina vilarinhos - 2014